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Escola Belga

Conselho de amigo: será muito difícil ler este post inteiro sem ter um copo de cerveja em mãos (cheio, de preferência). Se você não ainda não conhece a fundo a Escola Belga, prepare-se para desafiar sua própria noção de cerveja e sair da zona de conforto. Prometo que a viagem vai valer a pena, então sente firme na cadeira, agarre seu copo e vamos lá!



Bem, vamos começar do começo, para termos um pouco de contexto. O mundo da cerveja é dividido em três grandes escolas tradicionais, todas na Europa: Inglesa, Alemã e Belga. Há quem advogue que o frenesi cervejeiro dos últimos 30 anos nos Estados Unidos já deu origem a uma quarta escola, a Americana, contando com estilos que são, basicamente, releituras de estilos das escolas tradicionais. Já vimos um pouco da Escola Inglesa (links) e também da Alemã (links), e agora chegou a vez da psicodélica maravilhosa Escola Belga, para fecharmos o nosso tour pelas escolas tradicionais do Velho Continente. Mas fique tranquilo, nosso blog não tem preconceito de idade, e assim não iremos deixar de fora a jovem balzaquiana Escola Americana. Em breve!


Mas afinal, o que a Escola Belga tem assim de tão especial? O que a faz diferente das outras? Bem, é difícil pensar em um fio condutor que seja comum a tudo que é feito nessa escola, justamente porque ela é extremamente heterogênea e sem muitas regras. Mas talvez seja justamente a falta de regras que faça dessa a escola mais diferente e imprevisível. Ao contrário da Escola Alemã, guiada pela lei de pureza que só permite a utilização de malte, lúpulo água e levedura, na Escola Belga vale quase qualquer tipo de ingrediente. Você vai encontrar cervejas com fruta, com sementes, com ervas e outros temperos. Vai encontrar cervejas muito ácidas, muito doces e muito alcoólicas. Vai encontrar cervejas que precisam de anos para ficarem prontas, e que lembram mais um licor do que propriamente cerveja. Assim como pode ter a impressão que está tomando vinho ou espumante, ao invés de uma bebida feita a base de cevada.


Até o ponto em que você irá, fatalmente, se perguntar: mas afinal, o que é cerveja?

Essa é uma pergunta profunda e complexa, e possivelmente não conseguiremos responde-la nesse post (talvez em um post futuro, quem sabe?). Mas certamente abriremos seus horizontes, e o mero despertar da sua curiosidade já será suficiente para declararmos “missão cumprida”. E aí, topa conhecer um pouco da psicodelia belga? Então partiu!

Caracterização

A Escola Belga compreende as cervejas historicamente produzidas na Bélgica, Holanda e Norte da França. A bebida é consumida na região desde antes de Cristo, o que dá ideia de quão tradicional é essa escola. Mas foi a partir da idade média que a tradição moderna começou a tomar forma, com a produção de cerveja em monastérios liderando o processo de fabricação local. Além dos monges, fazendeiros locais também foram desenvolvendo suas próprias receitas, e assim chegamos na maioria dos estilos que sobrevivem até hoje. Infelizmente, a Bélgica e região atravessaram duas guerras mundiais, e a indústria cervejeira foi duramente atingida devido à ocupação alemã. Ainda assim, uma boa parte das fábricas e estilos sobreviveram ou foram reativadas depois desse difícil período, e até hoje a Bélgica e países vizinhos seguem sendo uma região cervejeira com raízes profundas no tempo e na tradição. Abaixo, falaremos dos principais estilos.

Witbier

Um dos estilos belgas mais populares no mundo inteiro é a witbier, que significa “cerveja branca”. Esse tipo de cerveja era fabricado desde o século 11 ou 12, tendo uma cor bastante pálida e diversos outros “temperos” além do lúpulo. O estilo quase desapareceu, quando a última cervejaria que o produzia fechou as portas, na Bélgica, na década de 50. Anos mais tarde, um ex-trabalhador de uma fábrica que havia produzido este estilo decidiu revisitá-lo, criando a Hoegaarden, uma das marcas mais conhecidas de witbier na atualidade. Hoje, essa cerveja ganhou o mundo e é fabricada em diversos lugares. Sua receita leva trigo e geralmente é temperada com uma fruta cítrica (laranja, limão, limão siciliano) e temperos (semente de coentro, pimenta, ervas). O baixo corpo e teor de álcool completam esse estilo, fazendo dele um dos mais leves e saborosos do mundo.

Cervejas de Abadia

A tradição belga de produzir cerveja em monastérios remonta à idade média, quando os monges eram detentores do conhecimento. O estudo detalhado das técnicas e a constante troca de receitas entre grupos de uma mesma congregação foi aperfeiçoando a cerveja produzida nesses ambientes, levando assim ao surgimento de estilos fantásticos e que resistiram à passagem do tempo. Uma vez que os mosteiros também eram pontos de parada para viajantes, os monges acabaram por produzir cerveja não apenas para seu consumo, geralmente mais leves, mas também para visitantes e para festividades, mais encorpadas e alcoólicas. No geral são cervejas maltadas, adocicadas, com pouquíssimo amargor de lúpulo e notas complexas de fermentação. As mais leves são as Blonde, cervejas douradas, levemente adocicadas e com teor alcoólico entre 6 e 7%. As Dubbel já são um segundo nível de dulçor e álcool, e são escuras. O terceiro nível são as Tripel, uma cerveja dourada ainda mais encorpada e alcoólica, podendo chegar a mais de 9% de álcool. Finalmente temos as Quadrupel, cervejas escuras e que podem chegar a 12% de álcool. Não é necessário dizer as cervejas mais potentes são também as mais complexas e adocicadas, e são excelentes como cervejas de guarda (ou seja, ao contrário de boa parte dos estilos de cerveja, uma maturação prolongada deixa a bebida ainda melhor). Antes de terminar, é importante mencionar os estilos Strong Golden Ale e Dark Strong Ale. Por mais que muitas cervejarias utilizem estes nomes, é muito provável que a origem destes dois estilos sejam as receitas tradicionais de abadia, sendo a Strong Golden Ale muito semelhante ao estilo Tripel, e a Dark Strong Ale sendo quase um sinônimo de Quadrupel.

Cervejas Trapistas

As cervejas trapistas estão entre as mais famosas e aclamadas do mundo inteiro, sendo quase que um destino obrigatório para quem visita a Bélgica e Holanda. Contudo, é importante deixar claro que o termo “Trapista” se refere a uma ordem monástica que fabrica e comercializa, entre outras coisas, cervejas de diversos estilos, geralmente de estilos de abadia. Atualmente 11 mosteiros Trapistas (dentre os mais de 170 existentes) produzem cerveja, sendo que os mais tradicionais estão localizados na Bélgica e Holanda. Entre as marcas Trapistas mais conhecidas podemos citar Achel, Orval, Rochefort, Chimay, Westmalle e La Trappe.

Farmhouse Ales

Em uma época em que era mais seguro beber cerveja do que água, fazendeiros da região produziam seus próprios estilos para atender as necessidades dos trabalhadores rurais. Surgiram assim as Farmhouse Ales, ou cervejas de fazenda, que utilizavam os ingredientes sazonais mais acessíveis. As mais famosas são o estilo Saison, produzida na Bélgica, e a Biere de Garde, produzia no norte da França. A Saison é um estilo leve e refrescante, levemente ácido devido à fermentação em barris de madeiras (que acabam contendo vários tipos de microorganismos). Já a cerveja francesa é uma cerveja de guarda, levemente escuras e com maior quantidade de álcool.

Cervejas selvagens

Este tópico merece um post em separado. Ou talvez dois. O tema das cervejas selvagens belgas, também chamadas de cervejas ácidas, é tão complexo que iremos apenas tocar na superfície. Mas, em resumo, a região da Bélgica tem uma tradição muito antiga de produzir cerveja utilizando outros microorganismos para a fermentação, além da levedura tradicional. Além de leveduras selvagens, bactérias também acabam fazendo parte deste processo, que assim pode levar até dois anos para ser finalizado e deixam a bebida ácida e com notas muito diferentes do que estamos acostumados no mundo da cerveja. Embora possas assustar em um primeiro momento, estas cervejas estão entre as mais complexas, caras e aclamadas cervejas do mundo. Entre os estilos mais famosos podemos citar as cervejas Flanders Brown Ale e Flanders Red Ale, de característica deliciosamente acética e que para muitos apreciadores pode lembrar um vinho.


Além delas, podemos citar as famosas cervejas Lambic, que são fermentandas em tanques abertos (isso mesmo, os belgas fazem o mosto e depois colocam em um tanque aberto para que toda a micro-flora presente no ambiente entre e faça a sua “mágica”). São dezenas de espécies de microorganismos fazendo a festa fermentação, o que gera um resultado único e praticamente impossível de recriar em qualquer outra região do mundo. O resultado é realmente selvagem, e para tornar a cerveja menos agressiva muitas vezes são adicionadas frutas, produzindo assim as Fruit Lambics. Recomenda-se iniciar no mundo das cervejas ácidas com parcimônia, mas se você já conhece um pouco deste mundo e quer ir mais a fundo, fica a sugestão da Kriek Boon, uma das Fruit Lambics mais apreciadas no mundo inteiro. E claro, deliciosamente ácida.

E aí, seu copo já está vazio? A cerveja foi necessária para ajudar no processo de descobrir tudo isso, certo? A Escola Belga é uma tão deliciosa quanto psicodélica, então não tem problema encher o copo de novo para ajudar a pensar e processar essas informações. Mas é isso que faz o mundo da cerveja tão bacana: estudar essa bebida é quase tão divertido apreciá-la. E assim seguimos, sempre trazendo um pouco de cultura cervejeira junto com sugestões de marcas e rótulos do mundo todo. Quer saber mais? É só ficar ligado nas próximas postagens. E até lá, saúde! Santé! Proost!


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